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Hitchcock, eterno

Foto: GoogleQuisera o destino, há exatos 114 anos, que aquele quem fora (e o é, até hoje), conhecido como o Mestre do Suspense, nascesse no mês de agosto. E bem em um dia 13. Para os supersticiosos de plantão, um prato cheio. Para os desapercebidos, nada de mais. Para fãs da sétima arte, uma coincidência histórica. E para os aficionados por Alfred Hitchcock, outro motivo para justificar a genialidade ao tratar assuntos de suspense e elaborar cenas de terror difíceis de serem esquecidas.

Tão difícil quanto encontrar cineastas à altura. Um patamar atingido apenas por nomes como Charlie Chaplin, Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, Billy Wilder e François Truffaut, pra citar alguns. Hoje, o “fazer cinema” ficou mais fácil em virtude do avanço da tecnologia, principalmente no que tange aos efeitos visuais computadorizados. Porém, quando o contexto geral do mise-en-scène é contestado, vale a velha máxima dos saudosistas: não se faz mais cinema como antigamente.

Hitchcock conseguiu ser único em seu gênero. Muito devido ao histórico de seu crescimento. Filho de Emma e William Hitchcock, viveu sua juventude sob rédeas curtas e com muita disciplina no bairro de Leytonstone, em Londres. A família, típica, o educou com rigidez da moral britânica, muitas vezes autoritária. O rigor católico deixou marcas profundas em sua formação psicológica e, ao crescer com a prática da punição com artefatos de borracha pelos sacerdotes, passou a ter uma visão única acerca dos conceitos de culpa e perdão. O crescente temor pelo “proibido” (como, na época, o humor negro) passou a ser fonte de inspiração para elementos que, mais tarde, fariam parte do “composé” cinematográfico do diretor, juntamente à inconfundível atmosfera de suspense que somente ele, até os dias atuais, soube criar.

Contratado por estúdios britânicos na década de 1920 como desenhista de letreiros, iniciou sua experiência com cinema também sendo responsável com cenários e pequenos diálogos. A primeira direção veio em 1923, com “Always Tell Your Wife”, filme não foi finalizado por falta de verba. Sua trajetória mudou de rumo após casar-se com Alma Reville, cujos pitacos foram primordiais para o produto final de cada um de seus longas.

Com 23 filmes rodados na Inglaterra e 31 nos Estados Unidos, inseriu duas técnicas na linguagem cinematográfica que, mais tarde, tornar-se-iam comuns. Em “Os 39 Degraus”, o cineasta apresenta pela primeira vez o “MacGuffin”, termo criado pelo próprio que significa a inserção de um objeto pretextual e de pouquíssima relevância para avançar na história. O exemplo mais famoso está em “Psicose”: o dinheiro roubado do patrão serve apenas para conduzir a personagem Marion Crane (interpretada por Janet Leigh) até o Motel Bates. Lá, a trama principal evolui sem que aquele dinheiro faça a menor diferença no desenrolar do enredo. Outra característica daquilo que viria a ser chamado de “estilo Hitchcockiano” é a utilização de um “bode expiatório”: um personagem inocente perseguido ou punido por um crime que não cometeu. Alguém da trama central que carregue consigo, sozinho, a culpa de qualquer crime, até a constatação real dos fatos.

Foto: GoogleSua destreza e atenção a detalhes ao tratar com o cinema, no entanto, não se refletia na vida pessoal. Aspas trazidas em inúmeras biografias, tais como “Os Bastidores de Psicose”, de Stephen Rebello, e “Fascinado Pela Beleza”, de Donald Spoto, traduzem os sentimentos dos atores e técnicos que trabalharam com Hitch ao longo dos anos. Dentre os adjetivos, depressivo, solitário, psicótico, perverso, tarado e maníaco. Sua célebre frase “Os atores devem ser tratados como gado” era levada ao pé da letra. Sua direção consistia no posicionamento das câmeras e o tratamento pessoal ficava, com o perdão do trocadilho, em segundo plano.

Entretanto, apesar de tratar subordinados com certa distância, tinha seus “preferidos”. Na verdade, “preferidas”: as atrizes loiras. Apaixonou-se por Vera Miles, Grace Kelly, Janet Leigh e, de forma mais grave e intensa, Tippi Hedren. Chegou ao ponto de não permitir que ela se relacionasse com ninguém nos sets de filmagem de “Os Pássaros” e “Marnie”. A atriz chegou a lembrar que ele mandava funcionários a seguirem para saber com quais tipo de pessoas se relacionava. Porém, dizem as más (e boas) línguas, que isso partia de uma intensa frustração sexual. Em toda sua existência, o diretor tivera apenas uma relação: aquela que concebeu sua filha única, Pat Hitchcock. Deste mesmo fracasso pessoal vinham os constantes comentários sobre sexo, os quais geravam constrangimentos e risos sem graça nos estúdios. Ainda assim, era querido por todos, pela doce capacidade de demonstrar afeto e respeito por aqueles que o rodeavam.

Sua paixão pela sétima arte transpunha-se a qualquer valor em sua vida. Exemplos não faltam e o principal jaz por meio dos bastidores da produção de “Psicose”. Hitch adquiriu os direitos do livro homônimo de Robert Bloch sem consultar a Paramount Studios, onde trabalhava. Comprou, inclusive, milhares de cópias do livro espalhadas pelos Estados Unidos para que o público não tivesse acesso à história (principalmente ao final surpreendente). Quando expôs a ideia para as filmagens, não teve o apoio dos produtores e, muito menos, o aporte financeiro. O diretor, então, hipotecou a própria casa em Los Angeles e pagou toda a montagem, incluindo salários, do próprio bolso, tendo apoio da empresa apenas para o lançamento nas salas de cinema. O resultado: seu maior êxito. A bilheteria total na época chegou à cifra de 50 milhões de dólares. A produção teve custo total de US$ 800 mil.

Porém, a pressão por sucessos atrás de sucessos e sua paranoia com as atrizes passaram a deixá-lo cada dia mais exausto e longe dos bons resultados. Ainda assim, um portfólio de criação com obras-primas do porte de “The Lodger – O Inquilino Sinistro”, “A Dama Oculta”, “Rebecca”, “Suspeita”, “Sabotador”, “A Sombra de Uma Dúvida”, “Festim Diabólico”, “Pacto Sinistro”, “Disque M Para Matar”, “Janela Indiscreta”, “O Homem Que Sabia Demais”, “Um Corpo Que Cai”, “Intriga Internacional”, “Psicose” e “Os Pássaros” não pode, sob qualquer hipótese, ser ignorado. Há de ser, para sempre, cultuado. Não à toa sobrevive às mais diversas gerações.

Foto: GoogleGênio, artista, controverso, perverso, tarado, maníaco, perfeccionista. Adjetivos que caibam à personalidade de Alfred Hitchcock não faltam. Mas, como dito no início deste texto, quando se fala do Mestre do Suspense e ao parâmetro cinematográfico criado por ele, uma qualificação não pode faltar: ao “completar” 114 anos, Alfred Hitchcock é eterno.

Antes inédito em DVD, “Juno e o Pavão” está nas lojas desde maio

Foto: DivulgaçãoO anteriormente inédito em DVD “Juno e o Pavão” (Juno and the Paycock), rodado por Alfred Hitchcock em 1929 na Inglaterra, está à venda nas lojas especializadas do Brasil desde maio deste ano. Comercializado por meio do acervo da distribuidora “Colecione Clássicos”, pode ser encontrado com preços que flutuam entre R$ 34,90 e R$ 39,90, tanto na internet, quanto nas dependências físicas do comércio. Com encarte trazendo o poster oficial na capa e outro de cinema no encarte interno, o disco leva aos fãs a versão original do filme: restaurada, mas com todas as características típicas de um longa com 83 anos de idade.

Lançado nos cinemas em 1930, “Juno e o Pavão” narra a história de uma família de um bairro simples de Dublin (na Irlanda) durante a década de 20. A matriarca, Juno Boyle (Sara Allgood), é o centro de uma luta diária contra os inúmeros problemas dentro de casa: seu marido, Capitão Jack Boyle (Edward Chapman), ex-militar, é um beberrão inveterado que perambula pelos pubs da cidade na companhia do melhor amigo Joxer Daly (Sidney Morgan) e recusa-se a trabalhar. O filho, Johnny (John Laurie), recém retornado da Primeira Guerra Mundial, fica inválido após perder um dos braços nas batalhas. Neste ínterim, a filha caçula, Mary (Kathleen O’Regan) se envolve com o jovem advogado Charles Bentham (John Longden), responsável pelo testamento de um familiar dos Boyle que promete deixá-los boa parte de uma herança que acabaria com seus problemas financeiros.

Não creio que possa falar mais do que isso. E a beleza deste filme é exatamente esta. Todos os casos tem finais dramáticos e descrevê-los seria um spoiler sem precedentes. É claro que trata-se de um filme antigo e pode parecer exagero, mas os caminhos traçados são tão bem amarrados que, ainda assim, não me sinto à vontade para contá-los neste post. Basta dizer que a atmosfera de todo o longa é crepuscular e, por 95 minutos, nos deparamos com experimentações daquele jovem que viria a ser o Mestre do Suspense. O cenário tem somente quatro ou cinco variações, o que nos deixa durante praticamente todo o filme na sala de estar da família central. Uma primeira tentativa de Hitchcock em fazer uma filmagem “teatral”, obtida com êxito quase 20 anos depois em “Festim Diabólico” (Rope, 1948). As atuações são muito caricatas, visto que naquele período os filmes falados estavam apenas surgindo. O roteiro, escrito por Hitch ao lado da esposa e fiel escudeira Alma Reville, foi baseado em peça de Sean O’Casey e não nos deixa sem respostas.

Acerca da fotografia, um ponto positivo e outro negativo. Apesar de errar em inúmeros closes e deixar-nos sem metade das cabeças dos atores em algumas cenas (os enxergamos apenas do nariz para baixo), Hitchcock buscou a linguagem cinematográfica além do diálogo. Ao fazer cenas com câmera aberta, dá a sensação de profundidade e traz à tona observações mais detalhadas do mise-en-scéne, dando-nos panoramas mais completos e complexos de todos os problemas que permeavam a família Boyle. No surgimento das produções do cinema falado, Hitch dizia que a estética do cinema ficaria empobrecida, em virtude de os roteiros terem uma preocupação maior com as falas. Por isso, “Juno e o Pavão” passa a ser um filme obrigatório para quem desejar entender como aquele então jovem cineasta mesclou ambas ferramentas e conseguiu contar uma ótima estória. Não é à toa que tornar-se-ia o Mestre…

Especificações técnicas
Filme: “Juno e o Pavão”
Nome original: “Juno and the Paycock” (The Shame of Mary Boyle)
País e ano: Reino Unido/ 1930
Produtoras: British International Pictures e Wardour Films
Duração: 95 min
Fotografia: Preto e Branco
Gênero: Comédia Trágica
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Alfred Hitchcock e Alma Reville (baseados em peça de Sean O’Casey)
Produção: John Maxwell
Música: Cecil Thornton
Elenco: Sara Allgood (Juno Boyle), Edward Chapman (Capitão Jack Boyle), Sidney Morgan (Joxer Daly), John Laurie (Johnny Boyle), Kathleen O’Regan (Mary Boyle), John Longden (Charles Bentham), Dave Morris (Jerry Devine), Maire O’Neill (Maisie Madigan), Barry Fitzgerald (The Orator), Dennis Wyndham (The Mobiliser), Fred Schwartz (Mr. Kelly), Donald Calthrop (Needle Nugent).