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Fontaine e a Mansão: A concretização de Rebecca

Foto: Divulgação CartazMuito estranho seria se este blog passasse sem tocar no nome de Joan Fontaine até o final do ano. Única atriz a ganhar um Oscar® por um longa do Mestre do Suspense – vencido em 1942, por “Suspeita” (Suspicion) -, deixou o plano físico em 15 de dezembro com um legado inquestionável na sétima arte. Porém, apesar do prêmio ter sido dado por outro filme, foi em “Rebecca – A mulher Inesquecível”, sua estreia nas telonas, o grande marco da carreira e ao lado de Alfred Hitchcock. Hoje, é considerado um dos maiores clássicos de toda a história do cinema.

O tema central parece simples: um jovem viúvo (“Maxim” De Winter, interpretado por Laurence Olivier) se apaixona por uma bela moça (Joan Fontaine) e resolve casar-se novamente. Porém, a jovem é fadada pelo destino a ser não somente a segunda “Sra. De Winter”, mas também aquela cuja vida terá para sempre a sombra de Rebecca, a primeira esposa do abastado lorde. Até quando essa simples e ingênua garota irá viver com esse “fantasma”?

A despretensão da sinopse é, aos poucos, desmembrada em inúmeros fatores. E, neles, jazem toda a genialidade de Hitchcock. O “espectro”, afinal, jamais é mostrado, pois não trata-se de um filme de terror. Aliás, quem é capaz de garantir, com toda a certeza, a presença de algo paranormal na trama? Pelo contrário. Hitch consegue estabelecer características tão poderosas e verossímeis à personagem-título que dá a ela uma vida sem a necessidade de aparecer durante os 130 minutos de produção. É um convite ao espectador para entender quem foi Rebecca e criá-la mentalmente ao seu bel prazer, amando-a ou odiando-a.

Na verdade, para conseguir gerar a noção de sua criação, o cineasta põe Rebecca em cada canto das cenas. Na vivência de seu viúvo, nas bocas de seus serviçais e, principalmente, no velho casarão, chamado de Manderley, um dos principais personagens do longa. O “fantasma” da falecida está em tudo: nas decorações, na rotina dos funcionários, nas lembranças e, acima de tudo, na constante expectativa de que a protagonista venha a ser uma repetição da primeira “De Winter”. Algo, claro, não concretizado.

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A frivolidade da governanta Mrs. Denvers (Dame Judith Anderson), é primordial para a atuação brilhante de Fontaine. Mais antiga na mansão, ela rebaixa a nova moradora a uma insignificância potencializada também pelos enormes cômodos. A recém-casada aceita a condição, e se deixa oprimir até o final do filme, quando começa a amadurecer e descobrir quem realmente foi Rebecca. A transição de seu condicionamento é tão sutil que mal nos damos conta de suas alterações enquanto realidade. A representação da despótica empregada é tão brilhante quanto a da personagem central, e também valeria uma estatueta da Academia.

Joan Fontaine (à direita) contracenando com Judith Anderson em "Rebecca"

Joan Fontaine (à direita) contracena com Judith Anderson em “Rebecca”

O clima criado por Hitch na velha Manderley nos deixa com a nítida impressão de que a figura da primeira esposa irá aparecer a qualquer momento. Assim como em “Psicose” (Psycho, 1960), portanto, a mansão é absolutamente fundamental para a história, visto ser determinante para todas as ações e reações daqueles que ali vivem. Ao mesmo tempo em que perduram as ações de superioridade premeditadas pela Sra. Denvers, o contraste com o tamanho do casarão se faz presente na percepção de sufocamento que apenas ambientes fechados poderiam causar.

Tudo somado à música de Franz Waxman acaba por instaurar um ambiente de múltiplos atributos, tais como insanidade, claustrofobia, aflição, comiseração e, porque não, medo. Fica estabelecido, assim, um dos melhores filmes de todos os tempos. Mostrando Hitchcock, em seu primeiro trabalho nos Estados Unidos, o quanto poderia somar às produções cinematográficas.

P.S.: Durante as filmagens, Laurence Olivier, contrariado por não emplacar a então namorada Vivien Leigh na produção, passou a destratar Joan Fontaine nos sets. Ao invés de condenar o “pouco caso” do ator, Hitchcock ordenou que todo o elenco fizesse o mesmo sem ela saber. A intenção? Deixá-la sentir-se exatamente como a personagem central e levar mais realidade às telas.

Hoje, diferentemente da época da elaboração da obra, podemos dizer que Fontaine se enquadrou perfeitamente naquele vasto espaço dentro dos estúdios. Mostrou sua grandiosidade em um ambiente desfavorável e hostil, destacando-se logo de cara para brilhar por mais longos anos aos olhos dos amantes do cinema. Não fica somente a lição artística propriamente dita, mas o ensinamento pra vida, cuja única certeza acaba de deixar o cinema com o mesmo ar de “Rebecca”…

Especificações técnicas
Filme: “Rebecca – A Mulher Inesquecível”
Nome original: “Rebecca”
País e ano: Estados Unidos/ 1940
Produtoras: Selznick International Picture e United Artists
Duração: 130 min
Fotografia: Preto e Branco
Gênero: Suspense
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Philip Macdonald, Michael Hogan, Robert E. Sherwood e Joan Harrison (baseado em livro de Daphne du Maurier)
Produção: David O. Selznick
Música: Franz Waxman
Elenco: Laurence Oliver (‘Maxim’ De Winter), Joan Fontaine (Sra. de Winter – Mrs. De Winter), Judith Anderson (Mrs. Danvers – Sra. Denvers), George Sanders (Jack Favell), Nigel Bruce (Major Giles Lacy), Reginald Denny (Frank Crawley), C. Aubrey Smith (Colonel Julyan), Gladys Cooper (Beatrice Lacy), Florence Bates (Mrs. Van Hopper), Leo G. Carroll (Dr. Baker).